Agência FAPESP
Ao longo dos séculos 19 e 20, a configuração e as, transformações do espaço urbano paulista refletiram ideias provenientes de diversos campos do conhecimento e a interação entre profissionais de diferentes nacionalidades – incluindo médicos higienistas, arquitetos, engenheiros, sanitaristas e agrônomos.
A trajetória intelectual e profissional desses especialistas foi objeto de estudos realizados, nos últimos quatro anos, por historiadores e urbanistas de diversas instituições paulistas em um Projeto Temático apoiado pela FAPESP. O estudo identificou as referências teóricas que guiaram o pensamento urbanístico nos dois últimos séculos e analisou até que ponto essas propostas de intervenção nas cidades se tornaram realidade.
Coordenado pela professora Maria Stella Bresciani, do Departamento de História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), o projeto reuniu pesquisadores e docentes da Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas), da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e da Escola de Estudos Avançados de Veneza (Itália).
De acordo com Maria Stella, entre os inúmeros resultados alcançados pelo projeto, um dos mais significativos consistiu em demonstrar o poder do capital privado na configuração do espaço urbano paulista. No decorrer do tempo, o conhecimento gerado pelos especialistas resultava em propostas e
soluções que nem sempre chegavam a se efetivar devido à pouca disponibilidade financeira da administração pública para realizar grandes intervenções.
“Muitas vezes o poder público não tinha recursos para efetivar as propostas dos especialistas e as intervenções dependiam bastante do capital privado. Até hoje, os empreendimentos imobiliários acabam prevalecendo”, disse à Agência FAPESP.
Um dos principais diferenciais do projeto é o caráter interdisciplinar, que possibilitou uma grande convergência entre as perspectivas de arquitetos e historiadores. Envolvida desde 1980 com questões urbanas, Maria Stella formou um grupo em 2005, com arquitetos e urbanistas da PUC-Campinas e da
Unesp-Bauru, a fim de desenvolver o projeto.
“Nós percebemos a necessidade de estabelecer um diálogo entre historiadores e arquitetos. A formação em arquitetura e urbanismo proporciona uma capacidade muito grande de leitura espacial desses processos, sob a perspectiva técnica da arquitetura, mas são menos treinados para fazer uma leitura crítica dos documentos. Os historiadores, por outro lado, são capacitados para essa leitura, mas não têm a perspectiva espacial. O diálogo entre as duas disciplinas foi muito importante”, afirmou.
Uma vez que o foco temporal do estudo foi definido nos séculos 19 e 20, os pesquisadores passaram a definir o eixo teórico do trabalho. Uma das tarefas mais difíceis nesse momento, segundo Maria Stella, consistiu em superar anacronismos e premissas teóricas arraigadas na bibliografia acadêmica, como a noção de importação de ideias inadequadas à realidade brasileira.
“A noção de ‘ideias fora do lugar’ veio da literatura e impregnou outras disciplinas como a sociologia, a história e o urbanismo. Mas optamos descartar essa visão, adotando um eixo teórico que entende o pensamento urbanístico como um saber que não se constitui a partir de uma nação, mas das experiências de várias situações, cujo resultado constitui um domínio comum do conhecimento”, disse.
O próprio conceito de urbanismo, no eixo teórico estabelecido pelos pesquisadores, é concebido como um saber composto de várias disciplinas, que vão da medicina higienista à engenharia e à arquitetura, com contribuições da política e da filosofia. O termo “urbanismo”, segundo a professora, não era utilizado no século 19. As intervenções eram definidas como operações de “embelezamento”.
“Na realidade trata-se de um campo transdisciplinar constituído de diversos saberes provenientes de diversas experiências locais e internacionais. Não apenas no Brasil, mas também nas cidades europeias, as grandes intervenções nas cidades – em especial no tratamento da questão sanitária – partiam de
uma interação entre profissionais e especialistas de diversas áreas, que internacionalizavam suas ideias em publicações e eram constantemente convidados a viajar para levar soluções a outros países”, explicou.
O projeto foi então desenvolvido em dois eixos fundamentais. O primeiro teve foco na produção do conhecimento científico e técnico, em São Paulo, de profissionais de áreas como medicina, engenharia sanitária, arquitetura e agronomia, traçando suas trajetórias e descobrindo suas referências teóricas. A lista de especialistas brasileiros e estrangeiros estudados incluiu nomes como Carlos Rath, Victor de Silva Freire, Francisco Prestes Maia, Ulhôa Cintra, Luiz de Anhaia Mello e Reynaldo Dierberger.
O segundo eixo, de acordo com Maria Stella, tratou dos projetos e intervenções que resultaram na configuração e reconfiguração do espaço urbano. Para isso, foi preciso retraçar o processo de urbanização e estudar os preceitos da medicina e da engenharia sanitárias presentes nos projetos
urbanísticos da época.
“Estudamos de que maneira os pressupostos daquele saber científico e técnico que já estavam sendo desenvolvidos na capital paulista foram aplicados na implementação de novas cidades em direção ao oeste do estado. Estudamos a história de como a expansão da fronteira cafeeira, dialogando com a
implantação da rede ferroviária do oeste paulista, interferiu na urbanização de toda essa área até os limites da cidade de São Paulo”, disse.
Urbanização dispersa
Segundo a professora da Unicamp, os pesquisadores envolvidos no projeto procuraram entender o processo pelo qual se estabeleceu, ao longo do tempo, uma crescente distância entre as propostas dos especialistas e efetiva urbanização das cidades.
“É interessante observar que a capital paulista, hoje quase inviável do ponto de vista da mobilidade, foi formada com a constante preocupação, por parte dos especialistas, em desafogar a cidade e construir grandes vias de tráfego urbano. O projeto de Prestes Maia [*Francisco Prestes Maia (1896-1965), urbanista e ex-prefeito de São Paulo*], por exemplo, foi concebido na década de 1930, mas só acabou de ser implementado na década de 1970. Mesmo hoje, o Plano Diretor da cidade parece estar sempre a reboque da expansão 'desordenada' da cidade”, afirmou Maria Stella.
Outra perspectiva do projeto consistiu em analisar como as propostas para as cidades se concentravam, principalmente no século 19, no âmbito do sanitarismo e do higienismo.
“A cidade de São Paulo se urbanizou de forma dispersa na topografia da cidade. Considerava-se adequada a instalação de núcleos urbanizados nas partes altas, fugindo dos fundos de vale alagadiços.
No século 20, essa urbanização dispersa começou a ser questionada e tiveram início as obras de
saneamento das várzeas e fundos de vale”, disse.
Além de diversos mestrados e doutorados desenvolvidos, o Projeto Temático irá gerar ainda uma série de publicações. Parte dos resultados serão publicados, no início de setembro, em um livro organizado por Ivone Salgado, da PUC-Campinas, e Ângelo Bertoni, professor da Universidade de Aix-en-Provence (França).
No projeto, intitulado “Saberes eruditos e técnicos na configuração do espaço urbano. Estado de São Paulo, séculos 19 e 20”, Ivone Salgado trabalhou especificamente com o subtema “A Medicina e a Engenharia na prática higienista e urbanística na configuração urbana da São Paulo Imperial”.
O tema “Da engenharia sanitária ao urbanismo: a constituição de um campo disciplinar e sua aplicação nas intervenções urbanas” foi trabalhado por Maria Stella, Adalberto da Silva Retto Júnior, da Unesp-Bauru, Josianne Cerasoli, da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), Anat Falbel e Marisa
Carpintero – ambas pós-doutorandas do IFCH-Unicamp.
Retto Júnior, Célio Losnak, Marta Enokibara e Norma Regina Constantino Truppel, todos professores da Unesp-Bauru, trabalharam o subtema “Conhecimento técnico e teórico na configuração e reconfiguração do oeste do estado de São Paulo”. “O legado e a preservação da arquitetura industrial”
foi o sub-tema de Cristina Meneguello, Silvana Rubino e Edgar De Decca, todos professores do IFCH-Unicamp.
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*profª. drª. rita amaral* - antropóloga
*os urbanitas* | www.aguaforte.com/antropologia | *skype*: *ritaamaral58*
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