martes, julio 22, 2008
Argentina
Argentina eterniza sua crise
Robert Mur
"Que a história me julgue, peço perdão se estiver enganado, meu voto não é positivo." Com estas palavras, o vice-presidente da Argentina e também presidente do Senado, Julio Cobos, desencadeou a crise institucional mais grave do país desde os acontecimentos de 2001 e a ascensão de Néstor Kirchner como presidente em 2003.
Eram 4h20 da madrugada quando Cobos tomou consciência de que protagonizava um fato histórico. Depois de quase 18 horas de uma sessão maratoniana no Senado, o vice-presidente devia exercer seu voto para desfazer o empate em 36 que acabava de ocorrer. Estavam em jogo nada menos que as polêmicas retenções fiscais móveis, ou direitos à exportação, de grãos que há mais de quatro meses sublevaram o setor agrário, gerando uma crise política e paralisando o país.
Julio Cobos não queria estar em sua própria pele. Votar "sim" equivaleria a se congraçar com o casal Kirchner, depois de ser marginalizado pela Casa Rosada nas últimas semanas por ter adotado uma atitude compreensiva e de diálogo com o setor rural, reunindo-se com líderes agrícolas, políticos de oposição e até com a cúpula da Igreja Católica, que não fala com a presidente Cristina Fernández. Votar "não" significava a tormenta, e ao mesmo tempo honrar suas convicções e seu temperamento moderado.
Ninguém queria estar na pele de Cobos. O presidente do grupo kirchnerista no Senado, Miguel Ángel Pichetto, disse antes de votar: "Não gostaria de estar em seu lugar". Depois da primeira votação, e de constatar o empate, Cobos leu o regulamento e disse que era necessária uma segunda votação antes de emitir seu voto, mas pediu a palavra para pronunciar um discurso emocionado, "com o coração", no qual refletiu uma personalidade de bom homem. Lembrou os momentos mais duros de sua vida, como quando, aos 23 anos, se viu com um fuzil na mão disposto a matar na guerra - que finalmente não eclodiu - contra o Chile pelo controle do canal de Beagle.
Tristonho, Cobos tocava a testa nervoso, agarrava o microfone como para não cair no poço que se abria sob seu lugar. O vice-presidente falava como um cidadão simples, com uma linguagem distante do maquiavelismo político dominante na Argentina, diante do olhar pétreo e inflexível dos senadores dos dois lados.
Cobos acabou pedindo o adiamento da sessão para buscar um consenso e não ter de efetivar a divisão do país. "A cidadania não está esperando que o presidente do Senado desempate, está esperando que daqui saia algo consensual", disse. Pichetto, de olhar gélido, respondeu citando Jesus Cristo: "O que for preciso fazer, que façamos rápido". E Cobos o fez, refletindo em suas palavras e em seu rosto que até o último segundo não sabia o que votar. Terminada a sessão, Pichetto diria: "A história vai julgá-lo mal", sendo a primeira voz a atacar esse herói suicida, que a partir de agora terá de agüentar chicotadas.
Para começar, o jornal governista "Página 12" deu a manchete ontem: "O satânico Dr. No". Os pedidos de demissão proliferaram e ao fechamento desta edição esperava-se um pronunciamento de Cristina Fernández, que viu sua maior derrota política vir daquele que a acompanhou no ano passado na chapa eleitoral.
Julio César Cleto Cobos, 53 anos e ex-governador de Mendoza, é chamado depreciativamente apenas de Cleto nos ambientes jornalísticos e políticos, querendo refletir elipticamente uma pouca inteligência política. Cleto soa como Cláudio, o imperador romano.
Durante a campanha presidencial, Cobos foi utilizado por Kirchner para encenar sua aparente abertura política, como exemplo de consenso em seu projeto plural, a Concertação, uma entente do peronismo kirchnerista com dirigentes da histórica União Cívica Radical (UCR). Cobos é o líder dos chamados "radicais K" e, como tal, sofreu a expulsão de seu partido ao apoiar Fernández.
Há alguns dias Kirchner teve um encontro com intelectuais, um dos quais perguntou ao ex-presidente pela figura de Cobos. Kirchner justificou sua escolha alegando que não se fiava em ninguém de seu próprio partido porque historicamente os vice-presidentes peronistas sempre acabaram traindo o presidente. Antes de votar, Cobos disse: "Não estou traindo ninguém", mas os peronistas já o vêem assim.
Na porta de sua casa, Cobos explicou que dormiu mal, apenas uma hora. "Retomei a bandeira do que as pessoas votaram", disse. Reconheceu suas contradições internas, "que tentei explicar com minha cara", e manifestou que "o que as pessoas querem é viver tranqüilas". O vice-presidente insistiu: "Não penso em renunciar, a crise seria se eu renunciasse. Tenho a legitimidade do povo", esclareceu, enquanto não via a hora de viajar para Mendoza, onde o esperavam seus filhos, "preocupados". "Sou um homem de família", concluiu. Um cidadão.
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