Um lulista em El Salvador
Nem o venezuelano Hugo Chávez, nem o boliviano Evo Morales e nem o nicaraguense Daniel Ortega foram à posse do primeiro presidente de esquerda de El Salvador, Mauricio Funes, na segunda-feira. Seria o caso de dizer que a ausência do trio bolivariano preencheu uma lacuna.
Porque se há uma coisa de que o menor país da América Latina precisa desesperadamente é moderação política, para assegurar a cicatrização das marcas de uma guerra civil de 12 anos entre regimes repressivos e a guerrilha marxista da Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional (FMLN) que deixou 75 mil mortos, a que se seguiram duas décadas de governos oligárquicos da Aliança Republicana Nacionalista (Arena).
Mas a ausência de Chávez e de seus apadrinhados numa solenidade a que compareceram numerosos dirigentes regionais (e, pelos Estados Unidos, a secretária de Estado Hillary Clinton) foi sobretudo sintomática. Traduziu o inconfundível desconforto do chavismo diante da ascensão de um líder esquerdista que prega a "sensatez" em um país que, pelo retrospecto de violência política, a desigualdade social e a pobreza extrema em que vivem 40% dos seus 6,9 milhões de habitantes, deveria ser campo fértil para a implantação do "socialismo do século 21".
Esse é o mote que serve de pretexto para o coronel venezuelano impor a sua autocracia e reunir seguidores entre os incautos que confundem o futuro com o velho caudilhismo latino-americano.
O fato de a maioria absoluta dos salvadorenhos ter sufragado um candidato como Funes - o ex-jornalista que se filiou à FMLN quando o movimento já havia deposto as armas e se convertido em partido político - não apenas evidencia um grau de maturidade surpreendente para um país com o histórico de arcaísmo típico das estereotipadas repúblicas bananeiras.
Representa um vivo desmentido às teorias simplistas segundo as quais, na América Latina, quanto mais uma sociedade arcar com o fardo de um passado do gênero tanto mais a polarização política extrema estará inscrita na ordem natural das suas coisas. E não se pode alegar que Funes iludiu os seus concidadãos.
Em momento algum de sua campanha (e tampouco depois de sua vitória) se conduziu como um radical, embora proclamasse em alto e bom som os seus compromissos com a promoção da justiça social em seu país. Coerentemente com isso, não hesitou em dizer, no discurso de posse, que "vivemos um tempo de crise de ideologias e falência de modelos". Reiterou os apelos de campanha à união nacional, falando em "seguirmos juntos em uma nova estrada na democracia".
Mas o progressismo pragmático de Funes tem, sim, um modelo: o presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva. Talvez uma circunstância fortuita - o fato de ser casado com uma petista de carteirinha desde os anos 1980, Vanda Pignato, ligada à Secretaria de Relações Internacionais do partido - tenha "feito a cabeça" do salvadorenho.
Seja como for, os vínculos de Funes com o lulismo se consolidaram no curso da campanha eleitoral, conduzida pelo marqueteiro do Planalto, João Santana. Depois, Lula enviou a San Salvador o seu chefe de gabinete, Gilberto Carvalho, para auxiliar o vitorioso na transição de governo. E ele se prepara para lançar uma versão local do Bolsa-Família brasileiro.
Era de esperar que, ao assumir, elogiasse o mentor. Mas, arguto, o associou a Barack Obama como exemplos de dirigentes que devem ser seguidos por encarnar "um caminho novo e seguro". (Como havia prometido, logo ao assumir anunciou o restabelecimento das relações com Cuba. El Salvador era o único país do Continente, além dos Estados Unidos, que ainda não reatara com Havana.)
Repetindo o que o seu mentor havia dito quando assumiu, o primeiro presidente lulista da América Latina afirmou que não tem "o direito de errar". Mas acertar exigirá muito mais dele. À parte as enormes diferenças entre os países, Lula teve a seu favor um ciclo sem precedentes de crescimento econômico global.
Funes tem contra si a retração que já afeta duramente as remessas dos seus 3 milhões de compatriotas expatriados, vitais para a economia nacional, e que interrompeu um processo de diversificação das exportações salvadorenhas. Resta esperar que a sensatez com que pretende orientar o seu governo amenize o baque.
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