viernes, noviembre 02, 2007

EL SUPREMO

Venezuela O drama de viver sob o regime de El Supremo

À sombra de El Supremo

Com a reforma constitucional aprovada na semana passada,
Hugo Chávez consolida seu regime autoritário e personalista
na Venezuela. Em Caracas, VEJA ouviu a história de dez
venezuelanos que tiveram a vida transformada pela
ditadura do "socialismo do século XXI"

Diogo Schelp,
de Caracas
VEJA

Para quem não tem a memória pessoal de ter vivido sob uma ditadura, ouvir depoimentos de venezuelanos é uma experiência educativa – e sufocante. O regime que o presidente Hugo Chávez está construindo na Venezuela não apenas é autoritário como se propõe a criar uma nação à imagem e semelhança de seu governante. Nesse ponto, distante de ser a promessa de novidades "século XXI", como proclama, Chávez é fiel à tradição caudilhesca do continente.

O estilo centralizador, a intolerância em relação a opiniões divergentes e, sobretudo, o modo como tenta transformar as instituições públicas em um apêndice de sua vontade e idiossincrasias parecem saídos das páginas de Eu O Supremo, a obra magistral do paraguaio Augusto Roa Bastos. O personagem do título é José Gaspar Rodríguez de Francia, "ditador perpétuo" do Paraguai no século XIX e protótipo do perfeito déspota sul-americano.

Nas páginas seguintes estão as histórias de dez venezuelanos cuja vida foi transformada pelo chavismo. Elas comprovam que é impossível ficar imune a um regime como o de Chávez, um prepotente disposto a impor a sua visão de mundo a qualquer custo. Mesmo quem aufere os benefícios da adesão ao ditador torna-se prisioneiro de um esquema que exige submissão absoluta e provas freqüentes de fidelidade. Sobre os que discordam do governo, recai o peso do poder do aparato oficial, que corta o crédito dos empresários, proíbe os órgãos públicos de contratar oposicionistas e pressiona a iniciativa privada a fazer o mesmo, e chega ao extremo de, à moda soviética, punir os filhos pelas posições políticas dos pais.

A sufocante atmosfera política ganhou novas nuvens negras na semana passada, quando a Assembléia Nacional terminou de referendar um por um os artigos da proposta de reforma constitucional apresentada pelo presidente. Não foi uma empreitada difícil, pois todos os deputados são chavistas (a oposição boicotou a eleição parlamentar de 2005). Apenas uma meia dúzia se absteve por razões de consciência (veja entrevista).

A nova Constituição, que teve 20% de seus artigos alterados, dá sustentação legal às medidas autoritárias que Chávez vem colocando em prática desde que foi eleito pela primeira vez, em 1998. A centralização do poder nas mãos do presidente, a militarização do país e o desrespeito ao direito de propriedade não são novidades no governo do coronel. Agora, no entanto, foram institucionalizados na Carta Magna da Venezuela.

Com um bônus: o mandato presidencial passa de seis para sete anos e pode ser renovado por tempo indeterminado nas urnas. Ou seja, Chávez pode agora aspirar à Presidência vitalícia. A Constituição será submetida à aprovação popular daqui a um mês. O processo é assim, acelerado, porque na Venezuela a Justiça Eleitoral está sob controle de funcionários leais a Chávez. No último referendo, esses quadros fiéis ao regime quebraram o sigilo do voto e permitiram que as informações fossem usadas pelo governo para punir os cidadãos que se opuseram ao presidente.

Para os venezuelanos, a confirmação da nova Constituição significará viver à sombra de um regime autoritário por um período cujas dimensões exatas talvez só possam ser traçadas pelo preço do petróleo. A exportação desse produto, cuja renda é controlada pessoalmente por Chávez, fornece os recursos que permitem ao governo comprar o apoio popular por meio de projetos assistencialistas. Nesse aspecto, o presidente venezuelano tem uma sorte do tamanho das reservas de seu país, que ocupam a sexta posição entre as maiores do planeta. O valor do barril ultrapassou nas últimas semanas a barreira dos 88 dólares, e a perspectiva é que chegue aos 100 dólares em breve. Quando Chávez foi eleito pela primeira vez, o barril valia apenas 10 dólares. A ascensão dos preços petrolíferos definiu desde o princípio o governo do coronel.

Nos últimos oito anos, seu governo passou por três fases. Na primeira, um ano depois de eleito, quando o preço do petróleo andava baixo, ele tratou de aprovar uma nova Constituição, escrita por ele próprio, que lhe permitiu colonizar com aliados a Suprema Corte, removendo esse obstáculo à sua pretensão de governar acima das instituições e da lei. O início da escalada no preço do petróleo permitiu a segunda fase, caracterizada pela invenção da "revolução bolivariana".

Até hoje mal definida ideologicamente, essa expressão se traduziu na prática pela expansão do clientelismo político. Chávez criou as misiones, programas assistencialistas que estabeleceram uma dependência concreta entre a população pobre e a figura onipresente do pai da pátria. As misiones, que incluem desde cooperativas até a alfabetização de adultos, são vinculadas diretamente a Chávez e consistem basicamente em uma fórmula para distribuir pequenas quantias de dinheiro aos participantes. Para sustentar esses programas, o presidente apropria-se das reservas internacionais do país e de um fundo formado por parte do lucro da PDVSA, a estatal do petróleo. Essa despesa não necessita da aprovação da Assembléia Nacional.

A terceira fase do governo chavista começou dois anos atrás, com o anúncio de que seu objetivo era a construção do "socialismo do século XXI". O elemento ideológico mais evidente desse conceito é o desejo de Chávez de concentrar o poder em suas mãos pelo maior tempo possível. Um mito proclamado pelos chavistas é o de que o discurso "bolivarista" do presidente tem o apoio da maioria dos venezuelanos. Uma pesquisa de opinião pública feita pela Universidade Central da Venezuela (UCV), em Caracas, mostra uma realidade mais crua.

A identificação com Chávez de grande parcela dos venezuelanos, sobretudo os mais pobres, é pessoal e destacada de sua retórica ideológica. Os venezuelanos gostam de Chávez por três motivos. Primeiro, porque ele se parece com as pessoas do "povo", por ser mestiço. Segundo, porque acreditam que ele dá voz aos pobres. Terceiro, porque vêem nele os valores morais, familiares e religiosos que mais prezam. "Os mesmos cidadãos que se identificam com Chávez discordam dos ataques do presidente à propriedade privada, não gostam da militarização do país e sentem calafrios só de pensar em ver a Venezuela repetir a experiência cubana", diz o sociólogo Amalio Belmonte, um dos autores do estudo.

Essa dissociação entre a figura do presidente e suas políticas é própria de ditaduras personalistas, que têm no argentino Juan Domingo Perón, no mexicano Antonio López de Santa Anna e no paraguaio Francia alguns de seus expoentes históricos. Um regime personalista, diz o sociólogo venezuelano Trino Márquez, costuma caracterizar-se por quatro princípios. O primeiro é a idéia de que o governante é o único capaz de liderar a nação para um futuro melhor. A noção de que o ditador é insubstituível é perniciosa porque o leva a acreditar que pode fazer qualquer coisa.

No mês passado, Chávez mandou cancelar uma apresentação do cantor espanhol Alejandro Sanz em um teatro público de Caracas apenas porque o músico havia criticado seu governo. O segundo princípio do personalismo é que, independentemente de haver ou não respaldo popular para o regime, o governante necessita cimentar sua força política no controle das Forças Armadas ou de milícias de civis armados. Chávez tem os dois. Sua milícia bolivariana, em que ele espera um dia reunir 2 milhões de homens e mulheres, tem até escritórios dentro das universidades bolivarianas, instituições de ensino superior criadas por Chávez para formar a futura elite de seu "socialismo do século XXI".

Quanto às Forças Armadas, Chávez acaba de conquistar, com a reforma constitucional, o direito de decidir pessoalmente a promoção de todos os militares, dos sargentos aos generais. A Venezuela, sob Chávez, tornou-se o segundo país com o maior gasto militar da América do Sul, depois da Colômbia. Recentemente, Chávez comprou 24 caças supersônicos russos Sukhoi, cinqüenta helicópteros e 100.000 fuzis Kalashnikov, entre outros equipamentos. Quem Chávez pretende enfrentar com esse arsenal? Certamente não os Estados Unidos, apesar de sua retórica antiamericana. Tampouco servirá para invadir a Bolívia, como já prometeu fazer caso seu amigo Evo Morales seja apeado do poder. "Na verdade, a Venezuela não tem um verdadeiro inimigo externo do qual se defender", diz o especialista militar Fernando Sampaio, professor da Escola Superior de Geopolítica e Estratégia, em Porto Alegre. "Portanto, o mais provável é que Chávez esteja se armando para se proteger de seu próprio povo, no dia em que os venezuelanos se cansarem dele."

O terceiro princípio de um regime autoritário personalista é a destruição do estado de direito, já que todas as instituições públicas têm de se submeter à vontade do governante. Na Venezuela, além dos deputados, os juízes, as autoridades eleitorais e até os promotores públicos obedecem às ordens de Chávez. O coronel não apenas nomeou chavistas para os cargos mais altos dessas carreiras como tem o poder de demitir magistrados, já que 80% deles têm contratos temporários com o estado. O quarto elemento personalista, comum no chavismo, é o culto à imagem do líder.

Chávez desenvolve esse seu lado narcisista de três maneiras. A primeira consiste em expor seu rosto em tamanho gigante em painéis, murais e até nas laterais dos ônibus nas ruas das cidades venezuelanas. A segunda maneira é sufocando os cidadãos com sua presença intermitente em pronunciamentos no rádio e na TV – ele controla o conteúdo de nada menos que oito canais abertos. A terceira forma de culto à personalidade é apresentar-se como o herdeiro histórico de Simon Bolívar, cuja obra de construção de uma grande nação sul-americana Chávez pretende concluir. Não há entre os brasileiros nenhum herói que receba a idolatria dedicada a Bolívar na Venezuela. Chávez espertamente chamou seu governo de "revolução bolivariana", implicitamente colocando seus opositores na condição de traidores da pátria. É irônico que Chávez seja amigo de Fidel Castro e elogie seu regime marxista, visto que Karl Marx simplesmente desprezava Bolívar. Em carta a seu amigo Friedrich Engels, o ideólogo do comunismo escreveu: "Simon Bolívar é o canalha mais covarde, brutal e miserável".

Como na ditadura de Fidel Castro, Chávez adotou o preceito de que o país entrou em processo de revolução permanente. Está escrito em sua nova Constituição que os meios de participação política do povo (como o voto) devem servir ao propósito da construção do socialismo. A estratégia de Chávez consiste em manter o país em uma transição constante. Isso cria uma sensação ambígua de insegurança e esperança, o que ajuda o presidente a manter as instituições e as massas sob seu controle.

O perigo do narcisismo aliado ao autoritarismo é o de Chávez atribuir-se tarefas quase divinas, como a de formar um "novo homem" inspirado em si próprio. "Nesse ponto, Chávez se parece muito com o paraguaio Francia, que chegou a proibir o casamento das jovens brancas com descendentes de espanhóis porque queria criar uma nação mestiça", disse a VEJA o cientista político americano Paul Sondrol, especialista em ditaduras latino-americanas da Universidade do Colorado. A Revolução Russa tinha ambições similares, como escreveu Leon Trotsky em 1916: "Produzir uma versão melhorada do homem, essa é a tarefa futura do comunismo". A tentativa soviética de extirpar do novo homem tudo o que fosse humano e natural resultou, como era de esperar, no fim do comunismo e na sobrevivência do que é humano e natural.

Eficiente em usar os mecanismos democráticos para acabar com a liberdade, Chávez também tem se mostrado capaz de sucatear a economia do país. A afirmação pode parecer contraditória para uma nação cujo produto interno bruto cresce a taxas superiores a 10% ao ano. Mas se justifica quando se levam em conta os fatores que têm alimentado essa expansão. A economia venezuelana cresce graças ao aumento da receita petrolífera e do gasto público.

"Em uma economia com muita liquidez e consumo elevado como a nossa, é natural que alguns empresários estejam ganhando muito dinheiro", diz o ex-ministro do Desenvolvimento Urbano da Venezuela Luís Penzini Fleury. "O problema é que as ameaças de estatização, o controle de preços, as importações maciças e os subsídios concedidos a uma parcela da população afastam qualquer interesse dos empresários em fazer novos investimentos", completa Penzini. Resultado: os venezuelanos nunca compraram tanto (a venda de carros no acumulado deste ano já superou em 50% o total de 2006), mas a oferta não está dando conta da demanda porque as empresas não investem na ampliação da produção. Não é sem razão. Quem vai querer investir em um país onde há poucos meses o governo estatizou as principais empresas de telefonia e de energia e fechou um dos maiores canais de TV por razões políticas?

O investimento externo direto na Venezuela é negativo – ou seja, há mais empresários retirando o capital investido do que apostando suas fichas no país. As poucas empresas que ainda se arriscam são construtoras, bancos e shopping centers. As vendas nos shoppings venezuelanos aumentaram quase 30% no primeiro trimestre deste ano em relação ao mesmo período do ano passado. A demanda interna é tal que as importações vindas dos Estados Unidos – o grande demônio imperialista, segundo Chávez – aumentaram 40% entre 2005 e 2006.

O crescimento das importações não é suficiente para evitar a falta de itens básicos nas gôndolas dos supermercados venezuelanos, uma decorrência direta do congelamento de preços instituído pelo governo numa tentativa tosca de conter a inflação, que deve fechar o ano em 20%, a maior da região. O resultado, na semana passada, eram filas de até seis horas para comprar leite nos mercados estatais. O racionamento de alimentos é um dos primeiros sinais daquilo que os venezuelanos mais temem: a transformação da Venezuela em uma nova Cuba.

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